A assistência à acusação somente é cabível se houver vítima?

A Constituição Federal prevê o Ministério Público como titular da ação penal (art. 129, I). Por sua vez, o art. 5º, LIX, especifica que “será admitida ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for intentada no prazo legal”.

Além disso, mesmo que não seja querelante, a vítima pode intervir como assistente da acusação nos casos em que o Ministério Público promove a ação penal.

Nesse caso, há uma oportunidade de que a vítima, seu representante ou qualquer uma das pessoas do art. 31 do Código de Processo Penal (cônjuge, ascendente, descendente ou irmão) ingresse no processo como auxiliar do Ministério Público.

Depois do pedido de habilitação, será ouvido o Ministério Público (art. 272 do CPP), que deve ater-se aos aspectos formais da assistência, como a existência de procuração com poderes expressos.

O assistente pode ser admitido em qualquer fase do processo, enquanto não tiver ocorrido o trânsito em julgado (art. 269 do CPP).

O art. 271 do CPP trata de alguns dos poderes do assistente da acusação, como a possibilidade de propor meios de prova, requerer perguntas às testemunhas, participar do debate oral (ou apresentar memoriais) e arrazoar os recursos interpostos pelo Ministério Público, assim como a possibilidade de recorrer.

Sobre os poderes do assistente da acusação e a (in)constitucionalidade desse instituto, escreverei outro texto. Neste momento, ressalto que a jurisprudência tem ampliado excessivamente a possibilidade de intervenção do assistente da acusação, inclusive para crimes que não tenham uma vítima individualmente considerada.

Nesse sentido, um dos precedentes mais relevantes é uma decisão do Superior Tribunal de Justiça em 2015:

PROCESSUAL PENAL. ASSISTÊNCIA À ACUSAÇÃO. LEGITIMIDADE. CRIME DE PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO DE QUE RESULTA MORTE POR LEGÍTIMA DEFESA. INTERVENÇÃO PRETENDIDA PELOS PAIS DO DE CUJUS. MITIGAÇÃO DO RIGOR NA ANÁLISE DA PRESENÇA DO INTERESSE JURÍDICO AUTORIZADOR DA INTERVENÇÃO. ESTREITA RELAÇÃO ENTRE O CRIME IMPUTADO NA DENÚNCIA E O EVENTO MORTE. RECURSO PROVIDO.
1. Não obstante a existência de posicionamentos, no âmbito doutrinário e jurisprudencial, que questionam a própria constitucionalidade da assistência à acusação, o Supremo Tribunal Federal reconhece a higidez do instituto processual, inclusive com amplo alcance, admitindo sua projeção não somente para as hipóteses de mera suplementação da atividade acusatória do órgão ministerial, como pacificamente aceito pelos Tribunais em casos de inércia do Parquet, mas também para seguir o assistente da acusação atuando no processo em fase recursal, mesmo em contrariedade à manifestação expressa do Ministério Público quanto à sua conformação com a sentença absolutória.
2. O art. 268 do Código de Processo Penal autoriza a intervenção na ação penal pública, como assistente do Ministério Público, do ofendido ou de seu representante legal, ou, na falta destes, de qualquer das pessoas mencionadas no art. 31 do mesmo diploma processual – cônjuge, ascendente, descendente ou irmão.
3. Na interpretação do referido dispositivo, deve-se tomar em consideração principalmente a finalidade da intervenção, devendo o instituto processual ser tratado como expressão do Estado Democrático de Direito e até mesmo como modalidade de controle – complementar àquele exercido pelo Poder Judiciário – da função acusatória atribuída privativamente ao Ministério Público.
4. Há que se mitigar o rigor na análise da presença do interesse jurídico que autorize a assistência, afastando-se a exigência consistente na absoluta vinculação entre a pretensão do interveniente e o objeto jurídico do tipo penal imputado na denúncia, uma vez que, diante de certas peculiaridades do caso concreto, interesses jurídicos podem assumir caráter metaindividual e, pulverizados sobre as relações que permeiam o núcleo da demanda, carecer de proteção jurídica igualmente legítima.
5. Hipótese em que foi indeferida pelo Tribunal de origem a assistência à acusação porque, afastada a ilicitude em relação à morte do filho dos habilitandos, pelo reconhecimento da legítima defesa, e restringindo-se a denúncia ao crime de porte ilegal de arma de fogo – delito que teria como vítima a própria sociedade -, desapareceria a figura do ofendido prevista no art. 268 do CPP e, consequentemente, o próprio interesse jurídico dos impetrantes em intervir na ação penal.
6. Embora não possam os recorrentes, a princípio, ser qualificados como ofendidos pelo mero porte ilegal de arma de fogo, o interesse que emana da morte de seu filho encontra-se entrelaçado de forma inarredável com o objeto da ação penal em que pretendem intervir, independentemente dos vícios do inquérito policial que alegam, ou mesmo do reconhecimento da legítima defesa, a qual não constitui objeto do presente mandamus.
7. Recurso ordinário provido.
(STJ, RMS 43.227/PE, Rel. Ministro Gurgel de Faria, Quinta Turma, julgado em 03/11/2015)

Entre os vários pontos relevantes, destaca-se a afirmação de que o assistente da acusação exerceria, de certa forma, um controle da atuação do Ministério Público. Ademais, no caso em comento, a vítima do crime de porte ilegal de arma de fogo seria a sociedade, de modo que não haveria ofendido que pudesse habilitar-se como assistente.

Discordando do Tribunal de Justiça, o STJ afastou a vinculação entre a assistência da acusação e a figura do ofendido (vítima de um crime), permitindo a habilitação dos pais de alguém que morreu em decorrência da utilização dessa arma em situação que configurou legítima defesa. Noutras palavras, não havia homicídio (nem vítima desse crime), considerando que foi reconhecida uma excludente de ilicitude (legítima defesa), mas permaneceu o crime de porte ilegal de arma de fogo, que tem a sociedade como vítima.

O STJ considerou que os pais do falecido poderiam ser assistentes da acusação em relação ao porte ilegal de arma de fogo, com base no interesse jurídico existente em relação à morte, ainda que o filho deles não fosse, tecnicamente, vítima de um crime de homicídio – a legítima defesa exclui a ilicitude desse fato – ou do crime de porte ilegal de arma de fogo, que não tem uma vítima individual.