A atipicidade penal da conduta do “flanelinha”

A expressão “flanelinha” é popularmente utilizada para denominar os lavadores ou guardadores de carros, que normalmente trabalham nas vias públicas.

É importante destacar que o art. 1º da Lei nº 6.242/75 dispõe: “O exercício da profissão de guardador e lavador autônomo de veículos automotores, em todo o território nacional, depende de registro na Delegacia Regional do Trabalho Competente.”

Por desempenharem a sua atividade de modo informal e sem o registro, muitos desses trabalhadores estão sendo processados criminalmente pela prática da contravenção prevista no art. 47 do Decreto-lei nº 3.688/41 (Lei das Contravenções Penais), “in verbis”:

Art. 47. Exercer profissão ou atividade econômica ou anunciar que a exerce, sem preencher as condições a que por lei está subordinado o seu exercício:
Pena – prisão simples, de quinze dias a três meses, ou multa, de quinhentos mil réis a cinco contos de réis.

Entrementes, há de se questionar sobre a atipicidade formal da conduta, tornando desnecessária posterior análise da ilicitude e da culpabilidade. Sendo atípica (material ou formalmente) a conduta, não há crime, seja qual for a teoria adotada (bipartida, tripartida ou quadripartida).

Nesse prisma, a expressão “sem preencher as condições a que por lei está subordinado o seu exercício” é uma elementar da contravenção penal em comento, de maneira que, inexistindo condições descritas na legislação reguladora da profissão ou atividade, a conduta é formalmente atípica.

A Lei nº 6.242/75 não prevê condições para o exercício das atividades de guardador e lavador de veículos, dispondo apenas sobre os documentos que devem ser apresentados para o registro (art. 3º). Dessa forma, não havendo condições descritas em lei, quem atua nessas atividades sem o registro pratica conduta formalmente atípica.

Nesse sentido, recente decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ):

CONSTITUCIONAL E PENAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO. EXERCÍCIO IRREGULAR DA PROFISSÃO (DECRETO-LEI 3.688/41, ART. 47). LAVADOR/GUARDADOR DE CARRO. INEXIGIBILIDADE DE CONHECIMENTOS TÉCNICOS PARA O EXERCÍCIO DA ATIVIDADE. ATIPICIDADE DA CONDUTA EVIDENCIADA. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. PRECEDENTES DO STJ E DO STF. WRIT NÃO CONHECIDO. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO.
[…]
3. A contravenção de exercício irregular de profissão penaliza aquele que desempenha habitualmente profissão ou atividade econômica sem preencher as condições legais. O objetivo da infração penal é coibir a simulação de atividade laboral especializada, hipótese em que se presume a habilitação do profissional.
4. Inviável concluir que o guardador ou lavador de carros exerça profissão ou atividade econômica especializada, apta a caracterizar a contravenção penal prevista no artigo 47 do Decreto-lei 3.688/1941. Isso porque lavar ou guardar automóveis são atividades que não exigem quaisquer conhecimentos técnicos ou habilidades específicas as quais, caso não preenchidas ou não observadas, possam ofender a proteção à organização do trabalho pelo Estado. Ademais, não geram perante a sociedade a presunção da habilitação do profissional.
5. A mera exigência registro dos guardadores ou lavadores de veículos em Delegacias Regionais do Trabalho pela Lei 6.242/1975 não satisfaz a elementar do tipo, referente à necessidade da existência de condições que subordinam o exercício da profissão.
6. Habeas corpus não conhecido. Ordem concedida de ofício para, nos termos do artigo 654, § 2º, do Código de Processo Penal, determinar o trancamento do processo penal de autos nº. 13.006.269-8.
(HC 309.958/MG, Rel. Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 22/09/2016, DJe 28/09/2016)

Em 2013, a Quinta Turma do STJ já havia decidido no mesmo sentido, mas utilizando fundamentos parcialmente distintos. Naquela oportunidade, ressaltou-se a diferença entre os requisitos para atuar como “flanelinha” e os requisitos técnicos exigidos por outras profissões, como advogados, médicos, odontologistas, engenheiros e corretores de imóveis. Da mesma forma, salientou-se não ser possível afirmar que os “flanelinhas” desempenham atividade econômica, pois os serviços não são necessariamente remunerados, constituindo mera liberalidade dos proprietários dos veículos (HC 273.692/MG, Rel. Ministro Jorge Mussi, Quinta Turma, julgado em 24/09/2013, DJe 02/10/2013).

Destarte, o STJ considera que a conduta dos “flanelinhas” é formalmente atípica em virtude dos seguintes fundamentos:

  • não há previsão de condições específicas na Lei nº 6.242/75;
  • não são exigidos requisitos técnicos, ao contrário de outras profissões;
  • não há atividade econômica, considerando que os serviços não são necessariamente remunerados.

Considero que a conduta do “flanelinha” não é atípica somente do ponto de vista formal, mas também pela perspectiva material, haja vista que a sua atividade não expõe nenhum bem jurídico a risco, inexistindo lesividade na conduta daquele que desempenha uma atividade para a qual não são necessários conhecimentos técnicos.