As penas desproporcionais no Código Penal

Analisando as sanções do Código Penal, conseguimos encontrar penas desproporcionais, seja pela análise isolada do tipo penal, seja pela comparação com outro tipo penal semelhante.

Sem pretender exaurir essa análise, mencionarei alguns casos de desproporcionalidade do preceito secundário do tipo penal.

Comparando as penas dos crimes de lesão corporal dolosa simples (art. 129 do Código Penal) e lesão corporal culposa (art. 129, §6º, do Código Penal), encontra-se uma desproporção inusitada. Enquanto a pena do crime da lesão dolosa simples é 3 meses a 1 ano de detenção, a sanção prevista para a lesão culposa é de 2 meses a 1 ano de detenção. Em outras palavras, não há distinção em relação à pena máxima. As lesões dolosas (simples) e culposas possuem a mesma pena máxima, não havendo a necessária distinção em relação ao elemento subjetivo (dolo e culpa).

Aliás, a lesão corporal dolosa simples (art. 129 do Código Penal) e a lesão corporal praticada em violência doméstica (art. 129, §9º, do Código Penal) têm a mesma pena mínima, qual seja, 3 meses de detenção. Concomitantemente, a pena máxima deste é o triplo da pena máxima daquele.

Se compararmos as hipóteses de crime de lesão corporal com o furto, observaremos outra desproporcionalidade.

A lesão, crime contra a pessoa, praticada em situação de violência doméstica (art. 129, §9º, do Código Penal) tem pena que varia de 3 meses a 3 anos. Por outro lado, o furto simples, crime contra o patrimônio, prevê pena de 1 a 4 anos de reclusão, ou seja, a pena mínima é o quádruplo da pena prevista para a lesão praticada em violência doméstica, além de ter a pena máxima 1 ano maior. A mesma comparação vale para o crime de apropriação indébita (art. 168 do Código Penal), que tem as mesmas penas do furto simples.

A pergunta é: como um crime contra o patrimônio, sem violência ou grave ameaça, na sua forma simples, pode ter penas tão superiores a um crime em relação ao qual a violência é inerente?

Caso se considere o furto qualificado (art. 155, §4º, do Código Penal), as penas são de 2 a 8 anos de reclusão, ou seja, a pena mínima é 8 vezes maior e a máxima é quase o triplo da pena prevista para o tipo penal do art. 129, §9º, do Código Penal.

Urge lembrar que até o furto de coisa comum (art. 156 do Código Penal) tem pena mínima muito superior à da lesão corporal simples ou por violência doméstica.

Uma desproporcionalidade conhecidíssima refere-se ao crime de receptação. A receptação simples (art. 180, “caput”, do Código Penal) prevê pena de 1 a 4 anos de reclusão, enquanto a receptação qualificada (art. 180, §1º, do Código Penal) determina uma pena de 3 a 8 anos de reclusão. Ocorre que a receptação simples prevê o elemento “coisa que sabe ser produto de crime”, o que, para parte da doutrina, seria dolo direto. Por outro lado, a receptação qualificada exige “coisa que deve saber ser produto de crime”, o que muitos doutrinadores interpretam como dolo eventual.

Nesse diapasão, muitos questionam o fato de um crime com dolo eventual ter a pena consideravelmente superior à sanção prevista para um crime que exige dolo direto, motivo pelo qual defendem que deveria ser aplicada a pena da receptação simples à receptação qualificada.

Entrementes, o Superior Tribunal de Justiça já afastou essa possibilidade:

[…]
ALEGADA DESPROPORCIONALIDADE DA PENA PREVISTA PARA O CRIME DISPOSTO NO § 1º DO ARTIGO 180 DO ESTATUTO REPRESSIVO. RECEPTAÇÃO QUALIFICADA. FIXAÇÃO DA SANÇÃO COMINADA NO CAPUT. IMPOSSIBILIDADE. CRIME AUTÔNOMO. MAIOR GRAVIDADE E REPROVABILIDADE DA CONDUTA. OFENSA AO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. NÃO OCORRÊNCIA. ORDEM DENEGADA.
1. A definição das formas qualificadas para algumas espécies de delitos, as quais via de regra acompanham uma reprimenda mais gravosa, se justifica pela necessidade de se impor um maior juízo de reprovabilidade às condutas que afetem de forma mais intensa os bens jurídicos protegidos pelo Direito Penal.
2. Não se mostra prudente a imposição da pena prevista para a receptação simples em condenação pela prática de receptação qualificada, pois a distinção feita pelo próprio legislador atende aos reclamos da sociedade que representa, no seio da qual é mais reprovável a conduta praticada no exercício de atividade comercial.
Precedentes do Superior Tribunal de Justiça e da Suprema Corte.
[…]
(HC 213.149/SC, Rel. Ministro Jorge Mussi, Quinta Turma, julgado em 27/08/2013, DJe 17/09/2013)

Insta salientar que o STJ, em 2008, numa decisão autoexplicativa, reconheceu a desproporcionalidade entre as penas da receptação simples e qualificada, desconsiderando a pena prevista para a receptação qualificada e aplicando o preceito secundário previsto para o crime de receptação simples, “in verbis”:

Receptação/receptação qualificada (punibilidade menor/maior). Lei nº 9.426/96 (imperfeições). Norma/preceito secundário (desconsideração).
1. É nossa a tradição da menor punibilidade da receptação, “em confronto com o crime de que deriva” (por exemplo, Hungria em seus comentários).
2. Fruto da Lei nº 9.426/96, o § 1º do art. 180 do Cód. Penal – receptação qualificada – reveste-se de imperfeições – formal e material. É que não é lícita sanção jurídica maior (mais grave) contra quem atue com dolo eventual (§ 1º), enquanto menor (menos grave) a sanção jurídica destinada a quem atue com dolo direto (art. 180, caput).
3. Há quem sustente, por isso, a inconstitucionalidade da norma secundária (violação dos princípios da proporcionalidade e da individualização); há quem sustente a desconsideração de tal norma (do § 1º, é claro).
4. Adoção da hipótese da desconsideração, porque a declaração, se admissível, de inconstitucionalidade conduziria, quando feita, a semelhante sorte, ou seja, à desconsideração da norma secundária (segundo os kelsenianos, da norma primária, porque, para eles, a primária é a norma que estabelece a sanção – negativa, também a positiva).
5. Ordem concedida a fim de substituir-se a reclusão de três a oito anos do § 1º pela de um a quatro anos do caput (Cód. Penal, art. 180).
(HC 101.531/MG, Rel. Ministro Nilson Naves, Sexta Turma, julgado em 22/04/2008, DJe 16/06/2008)

Como se observa, a desproporcionalidade das penas previstas no Código Penal é nítida. A ofensa ao patrimônio recebe penas maiores do que a ofensa à integridade física; dolo e culpa possuem pouca distinção quanto à pena (lesão dolosa e lesão culposa, por exemplo); o dolo eventual, no caso da receptação, tem pena maior que o dolo direto.