Devido processo x indevido processo

Vamos imaginar a tramitação de dois processos diferentes.

O primeiro processo, que chamo de indevido processo legal, teve a sua fase pré-processual (inquérito policial) tão secreta que se tornou inacessível até mesmo para o Advogado que representava o investigado. O Advogado foi impedido de ter acesso aos documentos que já integravam o inquérito e não sabia como orientaria seu cliente durante o interrogatório na fase policial.

Aliás, ao chegar à delegacia para o interrogatório, o Advogado foi orientado a permanecer do lado de fora enquanto o seu cliente – investigado – dava o depoimento sozinho e sem orientação prévia. Em seguida, as portas se abriram e o Advogado foi convidado para assinar o termo. Tentou ler o termo antes de assiná-lo, mas um policial disse que estavam com pressa.

Também na fase policial, a vítima foi chamada para fazer o reconhecimento. Um policial abriu uma foto no computador e apenas perguntou: “é esse?”. A vítima disse que o tipo físico era parecido. Assim, constou no termo: “reconhecido”.

A investigação se concluiu de forma duvidosa. Ainda assim, o Ministério Público decidiu denunciar, justificando mentalmente a sua atitude na ideia de que tentaria obter provas durante o processo.

O Juiz, que convive diariamente com o Promotor denunciante, recebeu a denúncia, acreditando que não seria possível que seu colega de audiências erraria ao denunciar.

Em seguida, a defesa tentou, de todas as formas, demonstrar que não havia justa causa e que a denúncia houvera sido recebida com base em indícios duvidosos. A alegação defensiva restou infrutífera.

Na audiência, o Juiz começou a fazer todas as perguntas. Antes de passar a palavra ao Ministério Público, o Magistrado indagou às testemunhas sobre materialidade, qualificadoras etc. Perguntou se havia sido feito o reconhecimento na fase policial, tendo a vítima respondido que lhe foi apresentada uma fotografia.

Ainda na audiência, o Promotor fez inúmeras perguntas, que aparentemente eram desnecessárias, haja vista que o Magistrado já havia feito indagações sobre todos os aspectos que poderiam desconstituir a presunção de inocência. Quando o Advogado começou a perguntar, o Magistrado quis saber qual seria a pertinência da pergunta. Ouviu um “não preciso justificar” e, em seguida, respondeu “indefiro a pergunta”.

Após o interrogatório, o Juiz perguntou se as partes pretendiam requerer alguma diligência. A defesa requereu algo que considerava relevante, mas novamente foi indeferido, pois considerado impertinente pelo Magistrado. Audiência encerrada.

O Ministério Público apresentou memoriais. Em seguida, o Advogado também apresentou memoriais e, no mesmo dia, o Juiz proferiu a sentença, mesmo sendo um processo volumoso e com inúmeros detalhes. Pelo pouquíssimo tempo entre a devolução do processo pelo Advogado e a publicação da sentença condenatória, seria impossível o Juiz ter lido integralmente o processo após a apresentação dos memoriais defensivos. Na verdade, seria impossível ter lido os memoriais defensivos naquele curto período de alguns minutos. Evidentemente, a sentença havia sido elaborada durante a audiência, sem considerar as alegações defensivas apresentadas dias depois nos memoriais.

Imaginemos agora um outro processo, que denomino devido processo legal.

No devido processo legal, o Advogado teve acesso ao inquérito policial sem dificuldades, como determina a súmula vinculante nº 14 do Supremo Tribunal Federal.

O Advogado analisou os documentos que se encontravam no inquérito policial e, antes do interrogatório, orientou devidamente o investigado (art. 185, §5º, do Código de Processo Penal). Em seguida, permaneceu ao lado dele durante o interrogatório e fez perguntas relacionadas ao fato apurado.

Foi realizado o reconhecimento seguindo detalhadamente o procedimento previsto no art. 226 do Código de Processo Penal.

A investigação apurava a prática de dois crimes. Contudo, surgiram indícios de que o investigado havia praticado apenas um crime. Sendo assim, o Promotor de Justiça denunciou apenas pelo fato cuja investigação apresentava indícios suficientes, requerendo – e obtendo – o arquivamento no que concerne ao crime cujos indícios eram extremamente frágeis.

Durante a audiência, o Juiz deixou as partes perguntarem primeiro. Não indagou sobre a pertinência das perguntas defensivas. Em seguida, apenas esclareceu alguns pontos complementares, a partir das perguntas anteriormente realizadas, nos termos do art. 212 do Código de Processo Penal.

Após o interrogatório judicial, a defesa requereu uma diligência, devidamente acolhida pelo Juiz, com base no art. 402 do Código de Processo Penal. Depois de cumprida a diligência, o Ministério Público apresentou memoriais e, em seguida, a defesa entregou os autos em cartório com as suas alegações.

Os autos foram conclusos ao Juiz, que leu atentamente as alegações da acusação e da defesa, examinando integralmente os autos com base nas afirmações/teses das partes. Por fim, proferiu sentença (condenatória ou absolutória, não importa).

Assim, sabendo que os Advogados Criminalistas querem apenas que tudo ocorra conforme o devido processo legal – respeitando a legislação – e rechaçam o indevido processo legal, como sustentar que os Criminalistas desejam a impunidade? Não estariam apenas tentando fazer cumprir a lei?

Em outras palavras, o problema está nos Criminalistas, que querem apenas o cumprimento das leis, ou na própria legislação?

Caso você perceba que o Advogado Criminalista deseja apenas o cumprimento da legislação, mas considere que o devido processo legal gera a impunidade, pergunto: como se opor a leis feitas por representantes democraticamente eleitos?

Em outras palavras, se você acredita que a legislação é branda, apesar de ter sido produzida por representantes eleitos pelo povo – e que representam a ideologia dos seus eleitores -, quem está errado: o povo ou você?