Furto e sistema de vigilância

Uma tese muito utilizada nos processos relativos ao crime de furto – especialmente quando praticado em estabelecimento comercial – é a alegação de que, quando existirem câmeras de vigilância ou outros sistemas de monitoramento no local, seria crime impossível, porquanto não haveria possibilidade de subtrair os bens sem que o agente fosse visto e impedido de continuar. Assim, argumenta-se que a consumação seria impossível, de modo que também não seria cabível a sua responsabilização por crime tentado.

Contudo, trata-se de tese contrária ao entendimento jurisprudencial predominante, inclusive com expressa rejeição por meio da súmula 567 do STJ, aprovada no início de 2016, que diz: “Sistema de vigilância realizado por monitoramento eletrônico ou por existência de segurança no interior de estabelecimento comercial, por si só, não torna impossível a configuração do crime de furto.”

Ainda que exista uma súmula que aparentemente (sim, aparentemente!) afaste qualquer chance defensiva, o tema merece uma análise cuidadosa.

De início, observa-se que a súmula utiliza o termo “por si só”. Ora, isso não significa que o furto praticado em local com sistema de vigilância nunca configurará crime impossível, mas sim que isso, de forma isolada, não leva a uma conclusão automática de que há impossibilidade.

Dessa forma, a jurisprudência manifesta-se no sentido de que, isoladamente, o sistema de vigilância não tornará absoluta a impossibilidade de consumação, mas nada impede que, no caso concreto, existam outros motivos que impeçam a consumação. Cabe à defesa fazer uma análise profunda das peculiaridades do caso.

O fato de o agente não ter conseguido sair do local com os objetos que pretendia furtar é um indicativo de que poderia ser inviável a consumação. Pode-se argumentar, por exemplo, que houve uma vigilância ininterrupta, sobretudo por meio de perguntas aos seguranças do estabelecimento durante a audiência. Algumas perguntas possíveis são: “você acompanhou o réu o tempo todo?” e “seria possível sair de lá com o objeto?”. Evidentemente, a forma e o contexto da pergunta dependerão do caso concreto.

É possível que alguns seguranças, com o objetivo de demonstrar a certeza sobre a autoria e a materialidade do crime, afirmem que seguiram o acusado e não o perderam de vista enquanto ele estava no local. Essa afirmação pode contribuir para a interpretação de que seria impossível consumar o furto. Por outro lado, alguns seguranças, cientes da chance de que a defesa utilize a tese do crime impossível, podem dar respostas evasivas sobre a vigilância ininterrupta. Inclusive, há casos em que os seguranças deixam o agente sair do estabelecimento para abordá-lo na calçada e, com isso, afirmarem que o crime se consumou.

Urge destacar que há casos de acolhimento da tese de crime impossível, inclusive após a sobredita súmula, como é o caso dessas decisões:

APELAÇÃO CRIMINAL. FURTO QUALIFICADO. PLEITO MINISTERIAL DE DESCONSTITUIÇÃO DA SENTENÇA ABSOLUTÓRIA SUMÁRIA E RETORNO DOS AUTOS À ORIGEM PARA O PROSSEGUIMENTO DO FEITO. REJEIÇÃO. HIPÓTESE DE CRIME IMPOSSÍVEL. ABSOLVIÇÃO SUMÁRIA MANTIDA. Operado, no caso, o distinguishing entre as peculiaridades fático-probatórias do caso examinado e a ratio decidendi do precedente substanciado no verbete 567 da Súmula do STJ, bem assim no disposto no art. 17 do CPB, inclusive com respaldo em precedente jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal. A mera existência de vigilância no estabelecimento comercial não enseja, por si só, o reconhecimento de crime impossível em se tratando de fato-subtração. No caso, não constitui crime a conduta dos acusados, uma vez que não tinham eles a mínima chance de lograr êxito na subtração pretendida, já que sob permanente vigilância de funcionário do estabelecimento comercial. O critério para se distinguir entre a ineficácia absoluta ou relativa do meio empregado à consecução do delito está, objetivamente, nas peculiaridades do caso concreto, não sendo possível afirmar, por presunção, que os réus teriam logrado êxito em levar as 23 camisetas ou algumas destas, acondicionadas em uma caixa de um metro de altura. SENTENÇA ABSOLUTÓRIA SUMÁRIA MANTIDA. APELO… IMPROVIDO. M/AC 7.468 – S 26.10.2017 – P 41 (Apelação Crime Nº 70075083683, Sexta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Aymoré Roque Pottes de Mello, Julgado em 26/10/2017).
(TJ-RS – ACR: 70075083683 RS, Relator: Aymoré Roque Pottes de Mello, Data de Julgamento: 26/10/2017, Sexta Câmara Criminal, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 30/10/2017)

APELAÇÃO CRIMINAL. FURTO. TENTATIVA. PREQUESTIONAMENTO. CRIME IMPOSSÍVEL. ABSOLVIÇÃO. 1 – O prequestionamento deve ser aceito tão somente para efeito de constituir requisito de admissibilidade de recurso especial ou extraordinário, observada a legislação constitucional e infraconstitucional. 2 – O monitoramento e acompanhamento constante de segurança do estabelecimento que impede, desde o princípio, o êxito do intento, torna o crime impossível. Apelação provida.
(TJ-GO – APR: 01521718020178090175, Relator: DES. IVO FAVARO, Data de Julgamento: 25/04/2019, 1A CAMARA CRIMINAL, Data de Publicação: DJ 2746 de 15/05/2019)

APELAÇÃO CRIMINAL. FURTO. TENTATIVA. ACOMPANHAMENTO. CRIME IMPOSSÍVEL. ABSOLVIÇÃO. O monitoramento e acompanhamento constante de segurança do estabelecimento que impede, desde o princípio, o êxito do intento da conduta, torna o crime impossível. Apelo provido.
(TJ-GO – APR: 02701942320178090130, Relator: DES. IVO FAVARO, Data de Julgamento: 13/11/2018, 1A CAMARA CRIMINAL, Data de Publicação: DJ 2644 de 10/12/2018)

APELAÇÃO CRIMINAL. CRIME CONTRA O PATRIMÔNIO. FURTO EM ESTABELECIMENTO COMERCIAL. VIGILÂNCIA. CRIME IMPOSSÍVEL. ABSOLVIÇÃO. Crime impossível é aquele que não poderia ser consumado em razão da ineficácia absoluta do meio empregado para sua execução ou pela impropriedade do objeto. Aplicabilidade do conceito no caso. Art. 386, III, do Código de Processo Penal. APELO PROVIDO.
(TJ-RS – ACR: 70078041357 RS, Relator: Carlos Alberto Etcheverry, Data de Julgamento: 30/08/2018, Sétima Câmara Criminal, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 04/10/2018)

Destarte, observa-se que também devem ser avaliados outros fatores, como a existência de dispositivo magnético que dispararia o alarme em caso de tentativa de saída do estabelecimento sem o devido pagamento. Da mesma forma, poder-se-ia defender a tese de crime impossível caso o objeto (normalmente eletrônicos) estivesse preso por cabo de aço sem que o agente tivesse ferramentas que pudessem romper o cabo.

A tese do crime impossível, quanto ao furto praticado em estabelecimento comercial, exigirá inúmeros cuidados. Na jurisprudência, há casos de afastamento da tese mesmo diante de provas de que o agente esteve em constante vigilância, quando ele tiver conseguido sair do local com o objeto subtraído.

Cita-se, por exemplo, uma decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul:

[…] CRIME IMPOSSÍVEL. Afastada a tese relativa ao crime impossível pela absoluta inidoneidade do meio empregado, até porque tal instituto somente se aplica quando da prática de crimes na forma tentada, a teor do que dispõe o artigo 17 do Código Penal. Ademais, ainda que assim não fosse, embora haja prova no sentido de que os acusados, desde a entrada no estacionamento do shopping, estavam em constante vigilância, tal circunstância, por si só, não se constitui em absoluta inidoneidade do meio empregado, até porque os acusados subtraíram os bens e empreenderam fuga do local […]
(TJ/RS, Sexta Câmara Criminal, Apelação Crime Nº 70075465484, Rel. Vanderlei Teresinha Tremeia Kubiak, julgado em 26/04/2018)