Justiça restaurativa x justiça retributiva

Como decorrência de um ilícito penal, surge para o Estado o poder/dever de punir aquele que cometeu o crime.

Durante muito tempo, houve uma ênfase no caráter retributivo do sistema penal. A pena privativa de liberdade reinou como consequência comum do reconhecimento da prática de um crime.

Entretanto, a justiça unicamente retributiva não contribui para a ressocialização do réu, tampouco restaura a situação jurídica da vítima ao estágio em que se encontrava antes de sofrer com a prática do crime.

Em alguns casos, o interesse público não é mais relevante que o interesse da vítima. Aliás, a necessidade de ouvir os anseios da vítima não é apenas para as ações penais de iniciativa privada e as ações penais públicas condicionadas à representação. Há casos de ações penais públicas em que a vítima deveria ser tratada como maior interessada (contravenções penais e furto, for exemplo).

A Justiça restaurativa é incentivada pelo Conselho Nacional de Justiça por meio do Protocolo de Cooperação para a difusão da Justiça Restaurativa, firmado pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB). Essa espécie de justiça busca uma pacificação das relações sociais mais efetiva do que aquela alcançada por meio de uma decisão judicial, isto é, imposta por um terceiro alheio ao fato.

Apesar de ser mais efetiva para resolver questões de interesse econômico, a justiça restaurativa também pode contribuir para uma conscientização do agente do fato, extrapolando o mero vínculo em relação à vítima e se estendendo para o trato do agente com toda a sociedade.

Aliás, a justiça restaurativa já foi citada pelo STJ como fundamento para deferir o trabalho externo a um apenado, apesar da suposta dificuldade para fiscalizá-lo:

AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. EXECUÇÃO PENAL. TRABALHO EXTERNO. DIFICULDADE DE FISCALIZAÇÃO. FUNDAMENTO INIDÔNEO. PRECEDENTE. RECURSO DESPROVIDO. […] Multicitado princípio é possível de ser concretizado também no âmbito penal, através da chamada Justiça restaurativa, do respeito aos direitos humanos e da humanização da aplicação do próprio direito penal e do correspondente processo penal. Portanto, o regramento da LEP, referente ao trabalho externo dos presos, quando do regime mais brando, decorre desse resgate constitucional. […] (STJ, Quinta Turma, AgRg no REsp 1.618.322/DF, Relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 13/12/2016)

Em alguns crimes patrimoniais – sobretudo aqueles sem violência ou grave ameaça –, como o crime de furto, melhor seria se a vítima fosse o foco do processo, isto é, se houvesse uma busca da restauração do seu patrimônio. Entretanto, como é sabido, o crime de furto, ainda que praticado na sua modalidade simples, é de ação penal pública incondicionada.

Apesar de alguns pontos em que a lei tenta atribuir uma relevância à restauração da situação da vítima, a prática forense tem desconsiderado esse viés.

Cita-se, por exemplo, a prestação pecuniária, que, no art. 45, §1º, do Código Penal, menciona o pagamento “à vítima, a seus dependentes ou a entidade pública ou privada com destinação social”. Na prática, muitos Juízes fixam diretamente o pagamento a uma entidade pública, desconsiderando a possibilidade de que tal pena restritiva de direitos beneficie a vítima do crime.

Por outro lado, a composição dos danos civis do Juizado Especial Criminal tem esse foco restaurativo, inclusive pelos enunciados já aprovados pelo FONAJE, como o nº 74 (“A prescrição e a decadência não impedem a homologação da composição civil”) e o nº 37 (“O acordo civil de que trata o art. 74 da Lei nº 9.099/1995 poderá versar sobre qualquer valor ou matéria”). Observa-se que, nesse caso, a satisfação da vítima vai além dos meros interessados acusatórios do Ministério Público.

Por sua vez, a transação penal perde o caráter restaurativo quando a jurisprudência admite que o autor do fato, se descumprir a proposta, seja processado (súmula vinculante nº 35 do STF), ignorando o que foi anteriormente acordado e que poderia ter um acompanhamento estatal buscando a ressocialização do agente e o direcionamento para beneficiar a vítima.

Em suma, ainda estamos razoavelmente distantes da justiça restaurativa no processo penal brasileiro, mas já demos alguns passos em direção a ela.