O mito da proporcionalidade da pena

Quando a Lei de Talião começou a ser aplicada, ocorreu um avanço momentâneo. Antes de tal premissa, um furto poderia ser penalizado com a mutilação do corpo ou com a morte. Havia uma nítida desproporcionalidade entre o crime e a sanção, gerando esta um efeito muito mais negativo que aquele.

A Lei de Talião, com a famosa frase “olho por olho, dente por dente”, produziu a  proporcionalidade. O mal empregado contra o indivíduo seria proporcional ao mal que ele causou. Se matou alguém, ele seria morto, por exemplo. Não raramente, havia uma violação ao que hoje consideramos o princípio da intranscendência da pena, haja vista que, em alguns casos, matar o filho de alguém produziria uma pena de morte para o filho do assassino.

Ocorre que, com o passar do tempo, a Lei de Talião foi substituída por penas privativas de liberdade. No Brasil, adotamos, como regra, as penas privativas de liberdade, restritivas de direitos e de multa, além de alguns efeitos da condenação (arts. 91 e 92 do Código Penal).

Evidentemente, há crimes em que a Lei de Talião é superada pelo emprego de uma sanção menos grave do que o crime praticado. Cita-se, por exemplo, o crime de homicídio, que não tem uma equivalência entre ato e sanção (o homicida não sofre uma pena de morte), mas sim a aplicação de uma pena racionalmente menos grave.

A questão basilar é que alguns crimes consistem em condutas menos graves do que a potencial pena (privação da liberdade). Isto porque a privação da liberdade seria equivalente a um cárcere privado, mas com a diferença de que é legitimada pelo Estado.

Para perceber a desproporcionalidade das penas pelo critério qualitativo (e não quantitativo), podemos tratar do crime de furto. Nesse caso, o agente atinge o patrimônio de alguém. O equivalente seria uma ofensa ao patrimônio do acusado, como, por exemplo, a devolução do bem subtraído ou a penhora de bens em valor equivalente ao que foi furtado. Entretanto, se não for cabível a substituição por pena restritiva de direitos, o agente que comete o crime de furto sofrerá uma privação de sua liberdade.

Aliás, abstratamente, há uma desproporcionalidade entre furto (pena de um a quatro anos de reclusão) e sequestro ou cárcere privado (pena de um a três anos de reclusão). O legislador, infelizmente, instituiu um Código Penal que dá muita ênfase aos crimes patrimoniais.

De qualquer modo, a pena do crime de furto gera uma consequência muito mais gravosa que o próprio crime. Entre o furto, o estelionato e um mero ilícito civil (deixar de pagar uma dívida, por exemplo), há apenas alguns detalhes.

Entretanto, o mero ilícito civil somente terá “sanções” sem gravidade significativa, como a aplicação de juros, correção monetária e multa. Além disso, esses efeitos somente serão aplicados se a “vítima” (cobrador da dívida) realizar a cobrança. Logo, essas “sanções” dependem da sua vontade.

Por outro lado, em relação ao furto e ao estelionato (poderíamos acrescentar a apropriação indébita), a sanção é claramente desproporcional em relação ao ato, porque a subtração ou a não devolução de um bem, bem como a obtenção da vantagem ilícita, produz apenas um desfalque patrimonial, enquanto a pena privativa de liberdade (caso não seja cabível a substituição por pena restritiva de direitos ou se houver o descumprimento desta) atinge, como se nota, a liberdade do indivíduo. Ademais, num sistema prisional falido como o nosso, muitos outros bens jurídicos são atingidos por uma pena que deveria somente privar a liberdade (leia aqui). Por derradeiro, o interesse da vítima não é juridicamente relevante, haja vista que, como regra, esses crimes são sujeitos à ação penal pública incondicionada.

Obviamente, não se está defendendo o retorno da Lei de Talião. Seria cruel e desumano se retornássemos às penas de natureza corporal (como, por exemplo, se uma lesão causasse uma pena de lesão ou uma tortura produzisse a tortura do condenado). O que se pretende demonstrar é apenas que a falta de debate sobre a proporcionalidade das penas produziu uma padronização das sanções.

Fala-se muito sobre a proporcionalidade quantitativa (o tempo da pena, de acordo com a gravidade do crime), mas pouco se aborda a (des)proporcionalidade qualitativa (o bem jurídico atingido por meio de uma pena decorrente da ofensa a determinado bem jurídico).