O reconhecimento de pessoas: por que as autoridades tratam o art. 226 do CPP como mera recomendação?

Quando pensamos em nulidades, um dos primeiros dispositivos legais lembrados é o art. 226 do Código de Processo Penal (CPP), ao lado do tão falado art. 212 do CPP.

O reconhecimento de pessoas é um tema extremamente relevante para o processo penal, considerando que, em muitos processos, a autoria depende desse reconhecimento. Ademais, a prática forense tem demonstrado que em alguns crimes, como furto ou roubo, a negativa de autoria é a tese defensiva mais utilizada.

O reconhecimento de pessoas está disciplinado no art. 226 do CPP nos seguintes termos:

Art. 226. Quando houver necessidade de fazer-se o reconhecimento de pessoa, proceder-se-á pela seguinte forma:
I – a pessoa que tiver de fazer o reconhecimento será convidada a descrever a pessoa que deva ser reconhecida;
Il – a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la;
III – se houver razão para recear que a pessoa chamada para o reconhecimento, por efeito de intimidação ou outra influência, não diga a verdade em face da pessoa que deve ser reconhecida, a autoridade providenciará para que esta não veja aquela;
IV – do ato de reconhecimento lavrar-se-á auto pormenorizado, subscrito pela autoridade, pela pessoa chamada para proceder ao reconhecimento e por duas testemunhas presenciais.

Como se observa, o procedimento começa com a descrição da pessoa a ser reconhecida, passando-se, em seguida, para a fase em que, se possível, são colocadas pessoas semelhantes para que quem tiver de fazer o reconhecimento aponte o autor do fato. Pela literalidade da lei, a primeira fase (descrição) é obrigatória, mas a segunda fase (apontamento entre várias pessoas semelhantes) somente ocorre se houver possibilidade.

Entendo que a descrição sempre deve ocorrer antes de se mostrar algum suspeito à suposta vítima ou testemunha. Dessa forma, quando a autoridade policial encontra alguém aparentemente suspeito e o coloca na frente das testemunhas, perguntando se ele é o autor do fato, há violação do art. 226 do CPP.

No que concerne ao art. 226, II, do CPP, entende-se que, se possível, deve ser seguido o seu procedimento. Assim, havendo possibilidade, devem ser colocadas outras pessoas ao lado da pessoa submetida a reconhecimento.

Por outro lado, não havendo possibilidade, os motivos devem constar no auto (art. 226, IV, do CPP) para que possam ser avaliados pelo julgador quando da valoração do teor do reconhecimento.

De qualquer sorte, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) reafirmou recentemente que a presença de outras pessoas junto ao réu é uma recomendação legal, e não uma exigência (RHC 61.862).

De modo ainda mais amplo, ao admitir o reconhecimento de pessoa por meio de fotografia, o STJ já entendeu que o art. 226 do CPP, em sua integralidade, é uma mera recomendação legal:

RECURSO EM HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO QUALIFICADO. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. FALTA DE JUSTA CAUSA. INEVIDÊNCIA. ILICITUDE DAS PROVAS NÃO CONFIGURADA. QUEBRA DO SIGILO TELEFÔNICO. DECISÃO FUNDAMENTADA. PRORROGAÇÕES. POSSIBILIDADE. CONTAGEM DO PRAZO A PARTIR DO EFETIVO INÍCIO DA ESCUTA. JUNTADA TARDIA DA ÍNTEGRA DO PROCEDIMENTO. QUESTÃO NÃO ENFRENTADA PELO TRIBUNAL ESTADUAL. PREJUÍZO NÃO DEMONSTRADO. RECONHECIMENTO FOTOGRÁFICO. INOBSERVÂNCIA DO ART. 226 DO CPP. NULIDADE. AUSÊNCIA. PARECER ACOLHIDO.
[…]
5. Segundo a jurisprudência desta Corte Superior, as disposições constantes do art. 226 do Código de Processo Penal configuram recomendação legal, e não uma exigência, não se configurando nulidade quando o ato processual é praticado de modo diverso.
6. Recurso em habeas corpus improvido.
(RHC 72.706/MT, Rel. Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 06/10/2016, DJe 25/10/2016)

Aliás, é criticável o reconhecimento por fotografia, se há possibilidade de apresentação do suspeito/indiciado/réu em conformidade com o que descreve o art. 226 do CPP. A percepção em uma fotografia é muito distinta, o que, somado ao risco de falsas memórias, pode produzir reconhecimento de inocentes como autores de crime.

Outro ponto que merece ser considerado se encontra no art. 228 do CPP, que dispõe: “Se várias forem as pessoas chamadas a efetuar o reconhecimento de pessoa ou de objeto, cada uma fará a prova em separado, evitando-se qualquer comunicação entre elas.”

Para que o art. 228 do CPP seja plenamente respeitado, não basta que cada reconhecimento seja realizado separadamente. É necessário que o art. 210, parágrafo único, do CPP, também seja respeitado, de maneira que as testemunhas permaneçam incomunicáveis entre si. Caso contrário, é possível que uma testemunha, após o seu depoimento em juízo, diga a outra testemunha, que aguarda para ser ouvida, que acabou de realizar o reconhecimento do autor do crime, que está com uma camisa azul, por exemplo. Essa situação prejudicaria a percepção da segunda testemunha, gerando um reconhecimento viciado.

Por fim, insta salientar que o art. 226, III, do CPP, possibilita que, durante o reconhecimento, a pessoa que deva ser reconhecida não veja a pessoa chamada para o reconhecimento. Entretanto, o art. 226, parágrafo único, do CPP, dispõe que essa regra não se aplica na fase de instrução criminal ou em plenário de julgamento, o que decorre da tese de que, perante a autoridade judicial, o reconhecimento deve ser feito de forma a minorar as chances de indevidas incriminações. Permitindo que o réu veja quem pretende reconhecê-lo como autor do crime, torna-se viável a informação sobre eventual interesse escuso (vingança, conflito anterior etc.) em incriminá-lo.

Ocorre que a prática tem apresentado uma realidade distinta. Há, inclusive, fóruns em que a sala de audiência possui uma porta com vidro escuro, ligando-a ao corredor interno do cartório, de modo a permitir que o reconhecimento seja feito sem que o réu veja quem é a testemunha ou vítima que se encontra do outro lado.

Diuturnamente, há tentativas de realização do reconhecimento, em audiências ou plenários do júri, em afronta à regra do art. 226, III, do CPP. Considerando o processo penal como garantia, é imprescindível que se respeite essa disposição legal, para que eventuais condenações fundamentadas no reconhecimento pessoal decorram da estrita observância das regras do jogo.