Teoria geral do processo? Chega!

Tratando de um artigo de Carnelutti, Lopes Jr. (2012, p. 91) narra:

Era uma vez três irmãs, que tinham em comum, pelo menos, um dos progenitores: chamavam-se a ciência do Direito Penal, a ciência do Processo Penal e a ciência do Processo Civil. E ocorreu que a segunda, em comparação com as demais, que eram belas e prósperas, teve uma infância e uma adolescência desleixada, abandonada. Durante muito tempo, dividiu com a primeira o mesmo quarto. A terceira, bela e sedutora, ganhou o mundo e despertou todas as atenções.

Em seguida, continua (LOPES Jr., 2012, p. 92):

Durante muito tempo, foi visto como um mero apêndice do Direito Penal. Evolui um pouco rumo à autonomia, é verdade, mas continua sendo preterido. Basta ver que não se tem notícia, na história acadêmica, de que o processo penal tivesse sido ministrado ao longo de dois anos, como costumeiramente o é o Direito Penal. Se compararmos com o processo civil então, a distância é ainda maior.

A aparente unificação dos ciências processuais é feita na Teoria Geral do Processo, disciplina apresentada nos primeiros semestres do curso de Direito, normalmente lecionada com maior foco no Direito Processual Civil. Aliás, alguns livros de Teoria Geral do Processo nem sequer mencionam as expressões “denúncia” e “queixa”, utilizando unicamente o termo “petição inicial”.

Expressões como “prejuízo”, “nulidade relativa”, “lide”, “preclusão” e “jurisdição” (e a divisão entre jurisdição voluntária e litigiosa) ingressam indevidamente no Direito Processual Penal sem – ou com poucas – adaptações em relação ao Direito Processual Civil. Estuda-se uma Teoria Geral do Processo estruturada apenas para o Direito Processual Civil.

Recente decisão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT) demonstra como a jurisprudência segue uma Teoria Geral do Processo com foco no Direito Processual Civil:

APELAÇÃO CRIMINAL. RECEPTAÇÃO. PRELIMINAR NULIDADE. IDENTIDADE FÍSICA DO JUIZ. REJEIÇÃO. MÉRITO. ABSOLVIÇÃO. AUTORIA E MATERIALIDADE COMPROVADAS. ABSOLVIÇÃO POR INSUFICIÊNCIA DE PROVAS E ATIPICIDADE DA CONDUTA. ORIGEM ILÍCITA DO BEM. EVIDENTE. IMPOSSIBILIDADE. NEGADO PROVIMENTO.
1. O princípio da identidade física do Juiz prevista no art. 399, § 2º, do CPP, estatui que: O juiz que presidiu a instrução deverá proferir a sentença.
2. Consoante jurisprudência majoritária, o marco para a vinculação do Magistrado que encerrou a instrução será a data de conclusão dos autos para a sentença. Precedentes.
3. O princípio da identidade física não é absoluto, de modo que se admite seu afastamento, sobretudo nas hipóteses previstas no art. 132 do revogado CPC, aplicado subsidiariamente. Assim, se por ocasião da conclusão dos autos o juiz que concluiu a instrução criminal tiver sido afastado por outro motivo, será compete para sentenciar o feito o Julgador que o tiver substituído, sem que isso resulte em nulidade.
4. O direito processual penal brasileiro adota o princípio pas de nullité sans grief, segundo o qual não se declara nulidade de ato, se da aventada nulidade não resultar prejuízo para uma das partes. Não havendo prejuízo não há nulidade a ser declarada.
5. O conjunto probatório contém elementos firmes e seguros a respeito da consciência e agir deliberado da apelante para a prática do crime previsto no art. 180, §3º e §4º, do CP.
6. É iterativa a jurisprudência deste Tribunal, segundo a qual no delito de receptação, o elemento subjetivo é verificado na análise das circunstâncias fáticas do caso. Assim, tendo o réu sido preso na posse de produto do crime, a ele recairá o ônus de demonstrar que desconhecia sua origem ilícita.
[…]
8. Recurso conhecido e não provido.
(TJDFT, 1ª Turma Criminal, apelação criminal 20140111486577A, Rel. Carlos Pires Soares Neto, julgado em 06/04/2017)

A ementa acima apresenta três grandes equívocos que decorrem da adoção equivocada de uma Teoria Geral do Processo no singular processo penal.

De início, no item nº 3, cita-se o REVOGADO Código de Processo Civil – e a decisão menciona que ele está revogado – como fonte subsidiária do Direito Processual Penal. Em outras palavras, não basta adotar o Código de Processo Civil em vigor como parâmetro para o processo penal, pois a legislação processual civil anterior também é aplicada pelos tribunais, apesar de ter sido revogada há mais de um ano e haver previsão específica no art. 1.046 do Novo Código de processo Civil no sentido de que suas disposições se aplicam desde logo aos processos pendentes.

No item nº 4, a decisão do TJDFT menciona que não há nulidade sem prejuízo. Como assim? A condenação não é um prejuízo? O único prejuízo que pode gerar a nulidade é o enforcamento ou o empalamento após uma longa sessão de tortura?

Adotar essa lógica processualista civil de que as nulidades dependem de prejuízo é desconsiderar totalmente que o processo penal tutela a sociedade, a vítima e, da mesma forma, o acusado, possibilitando que este se submeta a um julgamento no qual seus direitos fundamentais serão estritamente respeitados. O processo penal existe para que o Estado não caia na irracionalidade de condenar e punir sem respeitar as regras previamente definidas. A legitimidade do processo penal é violada quando há, por parte do Estado – Juiz e Promotores integram o Estado –, o descumprimento de uma norma editada pelo próprio Estado. Ora, o próprio Estado edita as regras do jogo para jogar contra o acusado e, ainda assim, descumpre-as?

Por fim, o item nº 6 da decisão do TJDFT menciona: “tendo o réu sido preso na posse de produto do crime, a ele recairá o ônus de demonstrar que desconhecia sua origem ilícita”. Portanto, atribui-se ao acusado o ônus de provar a sua inocência, violando o princípio da presunção de inocência e retirando do órgão acusador o ônus de provar a integralidade das suas alegações.

Se a acusação precisa provar que há crime, não precisaria também provar o conhecimento da origem ilícita, que faz parte do dolo (elemento subjetivo), integrante do fato típico? Pergunta-se: há crime sem fato típico?

Noutros termos, decisões como essa do TJDFT invertem o ônus da prova, atribuindo ao acusado a necessidade de provar que não há fato típico, enquanto a acusação apenas observa. Já não bastava a indevida presunção (caráter indiciário) de que, como regra, há ilicitude quando há fato típico?

Precisamos superar a Teoria Geral do Processo, pois não há partes livres e iguais no processo penal. Enquanto o Ministério Público não sofre prejuízos – financeiros ou de qualquer outra espécie – em caso de não serem acolhidos os seus pedidos, o réu sofre prejuízos que extrapolam qualquer valor pecuniário, haja vista que o processo penal define o futuro do seu direito à liberdade e, com um sistema prisional como o brasileiro, não é exagero dizer que a sua vida e, no mínimo, sua integridade física/psicológica também dependem do resultado desse processo.

 

REFERÊNCIA:

LOPES JR., Aury. Direito Processual penal. São Paulo: Saraiva, 2012.