O tráfico de drogas e o caso do lança-perfume

Leis penais em branco, também chamadas de leis cegas ou abertas, “são disposições cuja sanção é determinada, permanecendo indeterminado o seu conteúdo” (JESUS, 2013, p. 63). Em outras palavras, o preceito secundário (sanção) é devidamente previsto no tipo pena, mas falta a definição de algum elemento no que concerne ao preceito primário (descrição da conduta típica).

Um dos exemplos mais conhecidos de norma penal em branco é o art. 33 da Lei nº 11.343/06 (Lei de Drogas), que especifica os elementos do crime de tráfico:

Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:
Pena – reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa.

Os dezoito verbos previstos no tipo penal dependem, especialmente, da compreensão do conceito de drogas. Afinal, importar e exportar veículos, entregar a consumo álcool e trazer consigo um cigarro não são condutas criminosas – salvo situações específicas, como receptação de veículo ou contrabando de cigarros –, pois veículos, álcool e cigarros não se amoldam ao conceito de droga.

Para fins legais, as drogas são substâncias previstas na Portaria SVS/MS n. 344/98. Essa Portaria é um complemento do tipo penal.

Assim, o art. 33 da Lei de Drogas é uma norma penal em branco em sentido estrito (ou heterogênea), porque seu complemento tem natureza jurídica diversa e provêm de órgão distinto.

Uma questão extremamente curiosa diz respeito ao lança-perfume e à ocorrência de “abolitio criminis” temporária.

Inicialmente, a supracitada Portaria previa o cloreto de etila – substância ativa do lança-perfume – como substância entorpecente proibida.

Ocorre que, no dia 7 de dezembro de 2000, por meio da Resolução 104, houve, por equívoco, a retirada do cloreto de etila da mencionada lista. A substância foi novamente incluída no dia 15.

Chegou ao Supremo Tribunal Federal o HC 120.026, que analisava um caso envolvendo um homem que foi preso em flagrante no dia 12 de novembro de 2000 com 6 mil frascos de lança-perfume. Noutros termos, o fato teria ocorrido enquanto o cloreto de etila se encontrava na Portaria, mas antes de sua retirada temporária.

Por decisão monocrática do Ministro Celso de Mello, decidiu-se que ocorreu “abolitio criminis” temporária em relação ao cloreto de etila, isto é, a conduta deixou de ser considerada criminosa no que tange àqueles que praticaram o fato antes da retirada da substância da lista da Portaria. Logo, a alteração do complemento (Portaria n. 344/98) é suficiente para gerar a “abolitio criminis”.

Anteriormente, no HC 94.397, a Segunda Turma, de forma unânime, já havia decidido no mesmo sentido:

AÇÃO PENAL. Tráfico de entorpecentes. Comercialização de “lança-perfume”. Edição válida da Resolução ANVISA nº 104/2000. Retirada do cloreto de etila da lista de substâncias psicotrópicas de uso proscrito. Abolitio criminis. Republicação da Resolução. Irrelevância. Retroatividade da lei penal mais benéfica. HC concedido. A edição, por autoridade competente e de acordo com as disposições regimentais, da Resolução ANVISA nº 104, de 7/12/2000, retirou o cloreto de etila da lista de substâncias psicotrópicas de uso proscrito durante a sua vigência, tornando atípicos o uso e tráfico da substância até a nova edição da Resolução, e extinguindo a punibilidade dos fatos ocorridos antes da primeira portaria, nos termos do art. 5º, XL, da Constituição Federal.
(HC 94397, Relator: Min. Cezar Peluso, Segunda Turma, julgado em 09/03/2010)

Em suma, pode-se afirmar que a retroatividade da nova lei penal mais benéfica (art. 5º, XL, da Constituição Federal, e art. 107, III, do Código Penal) também se estende ao complemento das leis penais em branco.

REFERÊNCIA:

JESUS, Damásio de. Direito penal: parte geral. Vol. 1. 34. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.