A verdade no processo penal

Um dos fundamentos mais utilizados pelos Juízes quando deferem algum requerimento do Ministério Público (ainda que ilegal ou intempestivo) ou quando, violando o sistema constitucional acusatório, produzem prova de ofício é a busca da verdade real.

Não se sabe se é por ingenuidade, má-fé, compadrio com o Ministério Público ou ignorância quanto à compreensão dos fatos (a hermenêutica filosófica ajudaria neste caso), mas a verdade real continua aparecendo em inúmeras decisões.

Acredita-se, equivocadamente, em duas ideias: o Juiz deve buscar a verdade real; é possível alcançar a realidade dos fatos.

Quanto ao ideal de perseguir a verdade real, os Juízes deveriam entender a lógica da imparcialidade. Presumindo-se a inocência dos réus, qualquer conduta ativa dos Magistrados seria uma tentativa de afastar essa presunção e, portanto, buscar razões para condenar, o que é incompatível com o sistema acusatório. Nessa hipótese, parafraseando um conhecido Juiz – mas fazendo as devidas adaptações –, se quiser acusar e produzir provas, faça concurso para Promotor de Justiça.

Quanto à possibilidade de alcançar a realidade dos fatos, falta-lhes um pouco de noção da função que desempenham, o que é preocupante.

O Juiz nunca interpretará diretamente os fatos. Na verdade, mesmo que presenciasse alguma conduta criminosa na sua frente, permaneceria na compreensão dos fatos por meio da tradição em que está inserido. Ou voltamos para a proposta de interpretação sujeito-objeto?

No processo penal – como em qualquer outro –, há uma metainterpretação dos fatos. O Juiz não interpreta os fatos, mas apenas interpreta a interpretação exteriorizada pelas testemunhas.

Quando uma testemunha relata algo ao Juiz durante o seu depoimento, já está interpretando tudo que viu ou acredita ter visto (aqui, é importante pensar nas falsas memórias também).

Em um processo por furto, por exemplo, a testemunha interpreta e narra ao Juiz se viu o réu próximo ao local do furto (e também está interpretando o conceito de proximidade espacial), se o acusado parecia suspeito, se houve escalada etc.

Por sua vez, em um processo por corrupção ativa, quando o funcionário público, em seu testemunho, narra que o réu lhe ofereceu uma vantagem indevida, uma equivocada interpretação dos fatos em caso, por exemplo, de um suposto oferecimento implícito comprometeria a interpretação a ser realizada pelo Juiz.

Em suma, o Juiz interpreta o conjunto de interpretações oriundas das testemunhas. Noutros termos, primeiro a testemunha presencia algo (talvez uma parte da conduta criminosa); em seguida, relata ao Juiz durante a audiência, podendo cometer equívocos (falsas memórias); por fim, o Juiz interpreta a interpretação das testemunhas.

Ademais, com audiências marcadas a cada 10 ou 15 minutos, seria pretensioso imaginar a possibilidade de interpretar adequadamente os fatos. Voltando ao caso do furto, por exemplo, é comum perceber que, quando uma testemunha diz que o autor do fato “deve ter escalado” para subtrair a coisa alheia móvel, é raro ver algum Magistrado perguntar a altura da parede que deveria ser escalada, se seria necessário algum esforço significativo para subir nela (daí a qualificadora da escalada) etc. Normalmente, após a fala da testemunha, já estaria configurada a qualificadora para muitos Magistrados, que acreditam cegamente na interpretação feita pela testemunha. A busca da verdade real, além de impossível, é casuística…