Por que comentamos processos criminais que desconhecemos?

Lula e o triplex ou o sítio de Atibaia, a absolvição de Cláudia Cruz, o processo de Eduardo Cunha, as várias investigações contra Aécio Neves, os elementos de informação obtidos contra Michel Temer por meio da delação dos donos da JBS…

Em todos esses casos, as pessoas me perguntam se a decisão é correta e se o réu será condenado ou absolvido. Respondo que não sei. “Como não? Você não é ‘adevogado’ (sic)?”.

Parece que somos todos especialistas em processos que nunca analisamos.

Isso me lembra os professores e outros intelectuais que indicam livros que nunca leram. Se realmente tivessem lido os livros que indicam, o Brasil teria o recorde mundial de leitores de Bauman, Kelsen, Alexy, Dworkin, Habermas e outros. Entretanto, muitas pessoas apenas dizem que alguns livros e autores são bons porque viram as capas ou leram alguma resenha minúscula na internet.

Em relação aos processos criminais dos réus famosos, vimos pouco. Menos que a capa.

Nos casos em que atuamos, dificilmente podemos dizer peremptoriamente que o réu será condenado ou absolvido. Como poderíamos prever resultados de processos desconhecidos? E como poderíamos falar sobre a correção de decisões que estão em autos que nunca acessamos?

Evidentemente, não me refiro às críticas em relação a decisões exclusivamente jurídicas (sem análise de provas). As conduções coercitivas, por exemplo, são ilegais em qualquer processo, independentemente das provas produzidas. Também podemos discutir a inconstitucionalidade da prisão preventiva para garantir a ordem pública (ou da prisão de parlamentar fora da hipótese de flagrante) sem que estejamos analisando um processo, mas a correção da prisão cautelar em um caso concreto envolve uma análise fático-probatória que, como regra, não nos é possível.

Gadamer (2013, p. 475) referia:

“Dito de outro modo, a pergunta deve ser colocada. A colocação de uma pergunta pressupõe abertura, mas também delimitação. Implica uma fixação expressa dos pressupostos vigentes, a partir dos quais se mostra o que está em questão, aquilo que permanece em aberto. Por isso, também a colocação de uma pergunta pode ser correta ou falsa na medida em que consegue ou não levar o assunto para o âmbito do verdadeiramente aberto. Dizemos que a colocação de uma pergunta é falsa quando não alcança o aberto, quando se afasta desse pela manutenção de falsos pressupostos.”

Portanto, a compreensão depende da pergunta que se faz. Quando me perguntam sobre um processo que não li e me indagam sobre provas que não produzi, tampouco tive acesso a elas para valorá-las, a pergunta, na maioria das vezes, objetiva uma resposta que seja do agrado pessoal de quem indaga, sob pena de ouvir a frase “você está errado”. Há uma limitação do horizonte a ser fundido na compreensão.

Aliás, nesses casos que envolvem políticos e pessoas próximas a eles, tem-se a certeza de que a ideologia e os preconceitos herdados são insuperáveis pela racionalidade.

Esse é um ponto que separa habermasianos e gadamerianos (entre os quais me incluo). Ao pretender se deslocar para um ponto em que seja possível contestar a própria tradição, Habermas pressupõe equivocadamente que seria possível escapar do círculo hermenêutico e encontrar um ponto de vista objetivo, onde a compreensão aconteceria por meio da crítica aos preconceitos herdados. Como podemos criticar os pré-juízos se sempre estamos imersos neles?

De qualquer forma, o que temos em relação a esses processos criminais que envolvem figuras famosas – por bons ou maus motivos – é um grande júri que envolve a sociedade inteira, com a diferença que jurados legitimados, no desempenho da função prevista na Constituição, ouvem as duas partes e analisam as provas antes de decidirem, o que não é feito pelo “júri dos famosos”.

No nosso caso, como jurados ilegítimos, somente temos acesso ao que é “vazado” pela imprensa – e o vazamento nunca é integral – e ao rosto do acusado, por quem nutrimos simpatia ou repugnância, de acordo com o partido político a que pertence e dependendo de suas atitudes pessoais, em uma nítida confusão entre Direito e moral.

Não podemos confundir moral com o Direito (sobretudo o Direito Penal). Lenio Streck denuncia isso há anos. Ninguém pode ser condenado por ser imoral ou absolvido por fazer caridades. Prisão é para quem pratica crime, não importando quem seja.

O resultado dos processos deve depender exclusivamente de critérios jurídicos, limitando-se ao fato aparentemente criminoso que é objeto do processo.

Por fim, quem mais entende de um processo são os sujeitos que nele atuam (Juiz, Advogado, Promotor etc.). Depois deles, há um abismo que separa a nossa possibilidade de compreensão sobre determinado processo criminal.

Conheci muitos Advogados e Promotores ao longo dos anos. Alguns eram desidiosos, preguiçosos e praticavam um verdadeiro “estelionato intelectual”, além de violarem os “direitos autorais dos estagiários”, assinando peças processuais integralmente produzidas – e não alteradas – por estudantes do início do curso de Direito.

Até mesmo esses profissionais relapsos participavam das audiências e pegavam os processos em carga no momento de fazerem as alegações finais ou razões/contrarrazões de algum recurso. Não opinavam sem conhecer minimamente, em primeira pessoa – e não por meio da imprensa –, as provas do processo.

Se é assim, por que nós, profissionais sérios, discutiríamos um processo que tramita a milhares de quilômetros de distância?

REFERÊNCIA:

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 13. ed. Trad. Flávio Paulo Meurer. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.