O crime do art. 89 da Lei de Licitações

Como se sabe, a Lei nº 8.666/93 (Lei de Licitações) possui algumas disposições penais, inclusive com tipos penais específicos.

Dentre os crimes previstos na Lei de Licitações, um dos mais debatidos é aquele previsto no art. 89, nos seguintes termos:

Art. 89. Dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei, ou deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade:
Pena – detenção, de 3 (três) a 5 (cinco) anos, e multa.
Parágrafo único. Na mesma pena incorre aquele que, tendo comprovadamente concorrido para a consumação da ilegalidade, beneficiou-se da dispensa ou inexigibilidade ilegal, para celebrar contrato com o Poder Público.

A divergência mais significativa em relação a esse crime diz respeito ao elemento subjetivo, isto é, se há necessidade de configuração de um dolo específico ou se basta o dolo genérico para que a conduta se amolde ao tipo penal.

Nesse sentido, a jurisprudência pacificou o seguinte entendimento:

[…]
1. Esta Corte, após inicial divergência, pacificou o entendimento de que, para a configuração do crime previsto no art. 89 da Lei n. 8.666/1993 exige-se a presença do dolo específico de causar dano ao erário e a caracterização do efetivo prejuízo. Precedentes do STF e do STJ.
[…]
3. Não havendo menção, na denúncia de intenção deliberada de causar prejuízo à Administração ou de obter favorecimento pessoal, a celebração do Termo de Permissão de Uso, a título precário, sem a devida licitação configura irregularidade formal, fato que é insuficiente para demonstrar, per si, o elemento subjetivo indispensável à configuração do crime do art. 89 da Lei 8.666/2003, que exige a prova do dolo específico de causar dano ao erário e a administração pública.
4. Recurso Especial provido, para restabelecer a sentença absolutória, prejudicado o recurso do Ministério Público que versava sobre a dosimetria da pena e pretendia a condenação de réu cuja absolvição foi mantida pelo Tribunal a quo.
(REsp 1485384/SP, Rel. Ministro Reynaldo Soares Da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 26/09/2017, DJe 02/10/2017)

Algumas observações são necessárias.

O entendimento atual da jurisprudência evita que gestores públicos sejam responsabilizados criminalmente em situações nas quais, por desconhecimento legal ou equívoco na interpretação das hipóteses de inexigibilidade e dispensa de licitação, a conduta não tem o desiderato de causar dano ao erário.

Sabe-se que muitos gestores públicos são despreparados e não possuem conhecimentos técnicos sobre licitações, tampouco são devidamente assessorados por procuradores.

Assim, exigindo o dolo específico de causar dano ao erário, afasta-se a tipicidade em relação àqueles gestores que não dispensaram ou inexigiram a licitação com o escopo de ofender o bem jurídico protegido. Em outras palavras, não é a mera dispensa ou inexigibilidade da licitação fora das hipóteses legais que configura o crime em comento. Para que o fato seja penalmente típico, exige-se que essa conduta tenha uma finalidade: causar dano ao erário.

Por conseguinte, o dolo específico deve ser demonstrado na exordial acusatória, sob pena de inépcia. É sabido que o dolo é um elemento subjetivo de difícil comprovação. Ainda assim, é impositivo que a acusação, por meio da análise da vontade exteriorizada pelo agente, fundamente a denúncia apontando não apenas o dolo específico de causar dano ao erário, mas também a forma pela qual o agente atuou para dispensar ou inexigir a licitação de modo ilegal. Ademais, deve-se demonstrar como a dispensa ou inexigibilidade da licitação causou prejuízo ao erário. Se esses elementos não forem devidamente detalhados, a denúncia é inepta.

Nesse diapasão, a mera condição de administrador público não prova, por si só, que o agente tinha o dolo de causar dano ao erário.

Na minha experiência profissional, observo que esse crime, diante da necessidade de demonstrar o dolo específico e de redigir uma denúncia que detalhe a conduta direcionada a causar dano ao erário, gera, proporcionalmente, um grande percentual de absolvições, além dos casos de reconhecimento da inépcia da denúncia.