Crime x mero ilícito civil

O Direito Penal é pautado pela intervenção mínima e pela fragmentariedade, razão pela qual apenas é invocado quando os outros ramos do Direito se mostrarem insuficientes na proteção dos bens jurídicos mais relevantes. Por esse motivo, fala-se que o Direito Penal é a “ultima ratio”.

Entrementes, há casos em que se observa uma aparente zona cinzenta, diante da dúvida sobre a incidência do Direito Penal ou a mera aplicação de outro ramo do Direito. É o que ocorre, com muita frequência, nos crimes patrimoniais.

Os crimes de estelionato e apropriação indébita, por exemplo, são muito semelhantes a meras dívidas civis. Nesse esteio, o Advogado deverá alegar, sempre que possível, que a conduta é formalmente atípica, porque se trata de mero ilícito civil, não tendo relevância na seara criminal.

Para tanto, deve-se discutir o momento do “dolo de não pagar”, isto é, se ele esteve presente antes da negociação ou se surgiu em momento posterior.

A seguir, algumas decisões a favor do reconhecimento da atipicidade da conduta em casos que se classificariam apenas como ilícitos civis:

PENAL. APELAÇÃO CRIMINAL. CRIME CONTRA O PATRIMONIO. ESTELIONATO (CP, ART. 171, CAPUT). SENTENÇA CONDENATÓRIA. RECURSO DA DEFESA. ALEGADA FALTA DE PROVAS QUANTO AO DOLO NA CONDUTA. ATIPICIDADE EVIDENCIADA. DOLO PRECEDENTE À PACTUAÇÃO NÃO DEMONSTRADO. OCORRÊNCIA DE MERO ILÍCITO CIVIL. ABSOLVIÇÃO DEVIDA. MAJORAÇÃO DE URH’S. PROVIMENTO. SENTENÇA REFORMADA. – Não evidenciado que o réu agiu com dolo no momento da pactuação e recebimento dos valores pagos pela vítima, é forçoso concluir que o inadimplemento ocorrido posteriormente constitui mero ilícito civil e impõe o reconhecimento da atipicidade da conduta. […]
(TJ-SC – APR: 20120691695 SC 2012.069169-5 (Acórdão), Relator: Carlos Alberto Civinski, Data de Julgamento: 24/03/2014, Primeira Câmara Criminal Julgado)

APELAÇÃO PENAL ARTIGO 7º, INCISO VII DA LEI 8137/90 APELO MINISTERIAL EM QUE SE REQUER A CONDENAÇÃO NOS TERMOS DA DENÚNCIA. DEFESA: PLEITO DE DESCLASSIFICAÇÃO PARA O DELITO PREVISTO NO ARTIGO 66 DA LEI 8078/90 RECONHECIMENTO DA PRESCRIÇÃO. IMPROCEDÊNCIA. 1. Não há que se falar em desclassificação arguida pelo apelado se a conduta deste não caracteriza ilícito penal. PRELIMINAR REJEITADA. 2. Deve ser diferenciado o ilícito civil do ilícito penal, exigindo este um dolo especifico de indução do consumidor a erro. 3. A figura da indução não se acha presente nos autos, posto que o dolo, elemento que caracteriza a infração ao artigo 7º, inciso VII da Lei 8137/90, acha-se ausente. 4. Tenho por prequestionada as matérias arguidas pelo apelante. 5. Recurso conhecido e PARCIALMENTE PROVIDO, nos termos da fundamentação do voto.
(TJ-PA – APL: 00022864420098140401 BELÉM, Relator: MARIA DE NAZARE SILVA GOUVEIA DOS SANTOS, Data de Julgamento: 02/05/2013, 3ª CÂMARA CRIMINAL ISOLADA, Data de Publicação: 06/05/2013)

APELAÇÃO CRIME. ESTELIONATO. INSUFICIÊNCIA PROBATÓRIA. ABSOLVIÇÃO. Não há elementos que possibilitem o convencimento de que o réu agiu no intento de ter vantagem ilícita mediante fraude. O limite entre ilícito civil e ilícito penal consistente em estelionato é tênue, daí, então, a necessidade de ficar plenamente caracterizada a fraude do acusado. Réu que vende automóvel de terceiro, autorizado a tanto, com financiamento obtido pelo comprador, mas que, desfeito o negócio, promove a restituição do veículo ao vendedor e restitui o bem entregue como parte do preço ao comprador.
(TJ-RS – ACR: 70040569725 RS, Relator: Diogenes Vicente Hassan Ribeiro, Data de Julgamento: 19/10/2011, Quinta Câmara Criminal, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 25/10/2011)

APELAÇÃO CRIMINAL – ESTELIONATO – TIPICIDADE – PRESTAÇÃO DE SERVIÇO DESCUMPRIDA ? PALAVRA DA VÍTIMA ? PROVA TESTEMUNHAL – PROVA DOCUMENTAL ? FRAUDE ? DÚVIDA RELEVANTE – ILÍCITO CIVIL ? RECURSO PROVIDO. – Havendo dúvida relevante sobre a utilização de meio fraudulento para o induzimento da vítima em erro para a celebração de contrato de prestação de serviços posteriormente descumprido, incabível a condenação do agente como incurso nas sanções do art. 171, do Código Penal, uma vez que a mera obtenção de vantagem patrimonial em prejuízo da vítima, sem o emprego de fraude, caracteriza mero ilícito civil, e não penal. – Recurso provido.
(TJ-MG – APR: 10637090707851001 MG, Relator: Agostinho Gomes de Azevedo, Data de Julgamento: 12/12/2013, Câmaras Criminais / 7ª CÂMARA CRIMINAL, Data de Publicação: 10/01/2014)

APELAÇÃO CRIMINAL. ESTELIONATO. SENTENÇA ABSOLUTÓRIA. DOLO DO RÉU NÃO EVIDENCIADO. EMISSÃO DE CHEQUES PÓS-DATADOS. CHEQUES EMITIDOS COMO GARANTIA DE DÍVIDA. DESNATURAÇÃO COMO TÍTULO DE CRÉDITO. INSUFICIÊNCIA DE PROVAS. NÃO CARACTERIZAÇÃO DE DELITO PENAL. MERO ILÍCITO CIVIL. ABSOLVIÇÃO. APELAÇÃO DESPROVIDA. 1. A presença do dolo antecedente e a intenção do apelado em auferir vantagem econômica patrimonial em desfavor da vítima caracterizam o delito de estelionato. A fraude deve ter por fim o lucro ilícito e não mero inadimplemento de obrigação. 2. Para a configuração do crime de estelionato, é exigível que o agente empregue qualquer meio fraudulento, induzindo ou mantendo alguém em erro e obtendo, assim, vantagem ilícita para si ou para outrem, com a consequente lesão patrimonial da vítima. 3. A emissão de cheques para a apresentação em data futura e de duplicatas consubstancia atividade gerencial corriqueira de qualquer estabelecimento comercial que não pode, de plano, ser qualificada como crime de estelionato quando da inexistência de fundos a época de sua compensação. 4. Não havendo comprovação da intenção “ab initio” do acusado de fraudar, o mero inadimplemento constitui ilícito civil, não adentrando na esfera da fraude penal. Precedentes. 5. Quando o cheque é dado como garantia de dívida, perde a característica de pagamento à vista. Diante desse desvirtuamento, não cabe mais falar em ilicitude penal da conduta, e sim ilegalidade civil, mesmo sem suficiência de fundos. Precedentes. 6. A estrutura probatória existente nos autos, caracterizada por depoimentos contraditórios e acusações entre as partes, é insuficiente a comprovar que os cheques foram emitidos como ordem de pagamento à vista, sendo impossível a comprovação do dolo e imperiosa a absolvição do acusado. 7. Recurso desprovido.
(TJ-DF – APR: 20120110281924 DF 0008268-54.2012.8.07.0001, Relator: SILVÂNIO BARBOSA DOS SANTOS, Data de Julgamento: 04/09/2014, 2ª Turma Criminal, Data de Publicação: Publicado no DJE : 09/09/2014 . Pág.: 312)

HABEAS CORPUS TRANCATIVO. PENAL. ESTELIONATO. EXCEPCIONALIDADE. ALEGAÇÃO DE MERO INADIMPLEMENTO CONTRATUAL E DE AUSÊNCIA DE DOLO DE LUDIBRIAR. ILICITO CIVIL. INCIDÊNCIA DOS PRINCÍPIOS DA INTERVENÇÃO MÍNIMA, DA FRAGMENTARIEDADE E DA LEGALIDADE ESTRITA. ATIPICIDADE DA CONDUTA. O INADIMPLEMENTO DE COMPROMISSO COMERCIAL, POR SI SÓ, É INSUFICIENTE PARA CARACTERIZAR O CRIME DE ESTELIONATO. É REQUISITO ESSENCIAL À TIPIFICAÇÃO DO DELITO HAVER O AGENTE INDUZIDO A VÍTIMA EM ERRO, MEDIANTE ARDIL OU QUALQUER OUTRO MEIO ARTIFICIOSO OU FRAUDULENTO. O DESCUMPRIMENTO DE CONTRATO, SEM ELEMENTOS DE ILÍCITO PENAL, NÃO PODE ENSEJAR A PERSECUÇÃO. HIPOTESE DOS AUTOS QUE NÃO REVELA A CELEBRAÇÃO DA AVENÇA COMO MEIO FRAUDULENTO A FIM DE TRADUZIR VANTAGEM ILÍCITA EM FAVOR DOS PACIENTES. CONTROVÉRISA QUE DEVE SER DIRIMIDA NA SEARA CÍVEL. INEXISTINDO QUALQUER INDÍCIO DE QUE OS PACIENTES TIVESSEM AGIDO COM ANIMUS LUCRANDI, IMPÕE-SE O TRANCAMENTO DO INQUÉRITO POLICIAL. PARECER MINISTERIAL PELA CONCESSÃO DA ORDEM. ORDEM CONHECIDA E CONCEDIDA, CONFIRMANDO-SE OS TERMOS DA MEDIDA ANTECIPATÓRIA DEFERIDA EM 14/07/2017.
(TJ-BA – HC: 00175535520178050000, Relator: Ivone Bessa Ramos, Primeira Câmara Criminal – Primeira Turma, Data de Publicação: 18/10/2017)

Apesar das várias decisões favoráveis a essa tese defensiva, deve-se ter cuidado quanto à análise dos fatos. A jurisprudência considera que, havendo o dolo, caracteriza-se a fraude, o que torna a conduta criminalmente relevante. Em outras palavras, havendo o dolo, o fato é típico, configurando crime.

Cita-se, por exemplo, o seguinte julgado:

APELAÇÃO. ESTELIONATO. PROVA SUFICIENTE. […] ATIPICIDADE. NÃO CONFIGURADA. Como antes de obter o valor do ofendido, o réu já tinha o dolo de não cumprir com o acordado, configurado o crime, afastando o mero ilícito civil. […]
(TJ-RS – ACR: 70074245796 RS, Relator: Jucelana Lurdes Pereira dos Santos, Data de Julgamento: 17/08/2017, Sétima Câmara Criminal, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 28/08/2017)