O desaforamento do júri

O art. 427 do Código de Processo Penal (CPP) dispõe:

Se o interesse da ordem pública o reclamar ou houver dúvida sobre a imparcialidade do júri ou a segurança pessoal do acusado, o Tribunal, a requerimento do Ministério Público, do assistente, do querelante ou do acusado ou mediante representação do juiz competente, poderá determinar o desaforamento do julgamento para outra comarca da mesma região, onde não existam aqueles motivos, preferindo-se as mais próximas.

Portanto, como regra, o desaforamento é uma forma de evitar ou diminuir as chances de ocorrência de um julgamento por jurados contaminados com as emoções do fato.

Ademais, em caso de aparente parcialidade do Magistrado – e não dos jurados –, a nossa legislação não prevê o desaforamento como medida adequada, mas sim o impedimento ou a suspeição do Juiz.

Observando atentamente o art. 427 do CPP, constata-se que a legislação exige a aferição de determinados motivos que permitem o desaforamento. Nesse diapasão, o entendimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ) é no sentido de que a análise dos motivos que autorizam o desaforamento exige o reexame do conjunto fático-probatório, o que seria incabível em recurso especial, conforme a súmula nº 7 do STJ (AgRg no AREsp 1054091/RJ).

Ocorre que nem sempre será necessário o exame do arcabouço probatório. Em determinadas situações, é possível que o Tribunal que analisou o desaforamento tenha afirmado categoricamente no acórdão que determinado fato ocorreu ou está ocorrendo, mas que não caracteriza o motivo previsto no art. 427 do CPP. Assim, o exame pelo STJ consistiria em mera análise jurídica, sem a necessidade de reexaminar as provas acerca do fato.

Como exemplo, podemos imaginar a aferição do motivo “segurança pessoal do acusado” em um caso no qual, durante a instrução, ocorreram inúmeras tentativas de invasão do fórum para linchamento do réu. Se essas tentativas de linchamento foram reconhecidas no acórdão, o STJ, no recurso especial, apenas interpretaria se esses fatos caracterizam o motivo previsto na legislação, independentemente de aprofundamento acerca das provas.

Não desconsidero, evidentemente, que toda interpretação ocorre durante a aplicação. A hermenêutica pressupõe o caso concreto. Entretanto, retirar do STJ a necessidade de analisar minimamente os fatos é esvaziar completamente a sua competência.

Recentemente, no HC 374713, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça decidiu que o desaforamento de um caso se encerra com o veredito do júri popular. Transcreve-se parte da ementa desse julgado, considerando a forma didática pela qual foi exposto o instituto do desaforamento:

HABEAS CORPUS. PROCESSO PENAL. EXECUÇÃO PROVISÓRIA DA PENA. POSSIBILIDADE. ADOÇÃO DA NOVA ORIENTAÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. DESAFORAMENTO. COMPETÊNCIA DO JUÍZO DA COMARCA EM QUE O FEITO FOI DESAFORADO. HERMENÊUTICA JURÍDICA. NORMA EXCEPCIONAL QUE COMPORTA INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA. DESLOCAMENTO DO FORO TÃO SOMENTE PARA A REALIZAÇÃO DO TRIBUNAL POPULAR. DENEGAÇÃO DA ORDEM.
[…]
6. De acordo com o teor dos arts. 70 e 69, I, ambos do CPP, via de regra, a competência dar-se-á pelo local da infração, pois presume-se que, no distrito da culpa, o acervo probatório será construído com maior robustez, adotando-se, nesse campo, a expressão latina do forum delicti comissi.
7. No procedimento do Tribunal do Júri, a competência ratione loci revela-se ainda mais preponderante, haja vista que os jurados do local dos fatos, frise-se, leigos sob a ótica jurídica, decidirão com base em razões pessoais, influenciadas pela cultura social circunscrita àquela localidade.
8. Contudo, excepcionando essa regra, além dos casos de atraso no julgamento e excesso de serviço (art. 428, CPP), o art. 427 do Código de Ritos Penais estabelece que, nas hipóteses em que o interesse da ordem pública o reclamar ou houver dúvidas sobre a imparcialidade do júri ou a segurança pessoal do acusado, poderá ser determinado o desaforamento do feito para comarca distinta, da mesma região, onde não existam aqueles motivos, preferindo-se as mais próximas.
9. Em se tratando de norma de exceção, a jurisprudência desta Corte Superior tem consagrado entendimento que sua interpretação deve se dar de forma restritiva (AgRg no REsp 1111687/RO, Rel. Ministro NILSON NAVES, SEXTA TURMA, julgado em 16/06/2009, DJe 14/09/2009).
[…]
11. Delimitação da incidência do instituto da perpetuatio jurisdicionais no Tribunal do Júri, tão somente para submeter a sua solução todas as questões, incidentes ou não, que surgirem no curso do feito, quando serão solucionadas pelo juízo da comarca destinatária do desaforamento, enquanto não findo o juízo popular.
12. Não ocorrência de violação ao artigo 668 do CPP, tendo em vista tratar-se de norma afeta aos julgamentos originariamente designados ao Júri, o que não se revela quando da ocorrência do instituto do desaforamento.
13. Sob o panorama da interpretação sistemática que deve ser conferida no caso sub exame, forçoso concluir que o art. 427 do Código de Processo Penal não comporta interpretação ampliativa, de modo que o deslocamento de competência dar-se-á tão somente quanto ao Tribunal Popular, ao passo que, uma vez realizado, esgota-se a competência da comarca destinatária, inexistindo, in casu, qualquer violação quanto à execução provisória determinada pelo juízo originário da causa, em observância à exegese do art. 70 do CPP.
[…]
(HC 374.713/RS, Rel. Ministro Antonio Saldanha Palheiro, Sexta Turma, julgado em 06/06/2017, DJe 13/06/2017)

No caso analisado pelo STJ, o ponto nevrálgico do debate consistia na definição da competência para a determinação da execução provisória da pena.

Como se observa, o desaforamento tem uma abrangência muito restrita, deslocando apenas o julgamento pelos jurados. As outras matérias referentes ao processo continuam sendo de competência do juízo original.

No mesmo processo, o STJ considerou que o fato de a sentença mencionar a exigência do trânsito em julgado não impossibilita a execução provisória da pena, ainda que vigorasse na época o entendimento do STF contra a execução provisória. Para o STJ, apesar de haver menção da expressão “aguarde-se o trânsito em julgado” na sentença, a posterior execução provisória da pena não viola o trânsito em julgado.