O problema do “periculum libertatis”

“Por que alguém cometeu um crime e já foi solto? Se há provas de que ele é ‘bandido’, como pode estar em liberdade?”

Essas frases foram exaustivamente divulgadas recentemente após a soltura de alguns políticos e a negativa de prisão de outros. Rapidamente, as redes sociais se encheram de postagens com críticas às decisões dos julgadores que, de forma contramajoritária e sem se curvarem aos clamores públicos, definiram a regra como liberdade.

Para quem não é da área criminal, é difícil entender que um acusado pode permanecer solto durante o processo, ainda que tenha sido preso em flagrante ou existam inúmeras provas que fundamentem sua futura condenação. Aliás, em outro texto (“O que faz alguém ser preso preventivamente? – leia aqui), analisei alguns julgados do Supremo Tribunal Federal sobre a prisão preventiva.

O equívoco sobre a necessidade da prisão cautelar decorre da aparente exigência apenas do “fumus commissi delicti”, isto é, da probabilidade da ocorrência de uma infração penal. Havendo “fumaça” (“rectius”: indícios suficientes) de autoria e materialidade, imagina-se, em evidente confusão entre prisão definitiva e prisão provisória/cautelar, que alguém deve ser encarcerado.

Como é sabido, a prisão em decorrência da prática de um crime é a prisão definitiva, aplicada como pena privativa de liberdade.

Por outro lado, a prisão cautelar não exige apenas a demonstração de que houve a prática de uma infração penal. É imperativo que exista a necessidade de tutelar o processo penal, para que, nesse caso, ocorra, excepcionalmente, a restrição do direito à liberdade, desde que a medida seja necessária, adequada e insubstituível por outra medida, como uma cautelar diversa da prisão.

Em outras palavras, para a prisão cautelar, exige-se o “periculum libertatis”. Conforme Lopes Jr. (2012, p. 780), “o fundamento é um periculum libertatis, enquanto perigo que decorre do estado de liberdade do imputado”.

Nesse diapasão, o “periculum libertatis” deve ser avaliado com cautela, porque apenas excepcionalmente haverá perigo em caso de liberdade de alguém. Aliás, o maior perigo é a restrição da liberdade de forma impensada.

Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça expôs com perfeição o que seria o “periculum libertatis”:

RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO. LAVAGEM DE DINHEIRO. OPERAÇÃO ARGUS. (I) PRISÃO PREVENTIVA. DECRETO PRISIONAL FUNDAMENTADO. ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA SOFISTICADA. GRAVIDADE CONCRETA DOS FATOS. RECORRENTE APONTADO COMO LÍDER DE UM DOS NÚCLEOS DO GRUPO. POSSIBILIDADE DE REITERAÇÃO DELITIVA. (II) CONDIÇÕES PESSOAIS FAVORÁVEIS. IRRELEVÂNCIA. (III) RECURSO A QUE SE NEGA PROVIMENTO.
1. O ordenamento jurídico vigente traz a liberdade do indivíduo como regra. Assim, antes da confirmação da condenação pelo Tribunal de Justiça, a prisão revela-se cabível tão somente quando estiver concretamente comprovada a existência do periculum libertatis, sendo impossível o recolhimento de alguém ao cárcere caso se mostrem inexistentes os pressupostos autorizadores da medida extrema, previstos na legislação processual penal.
[…]
(RHC 80.612/RS, Rel. Ministro Antonio Saldanha Palheiro, Sexta Turma, julgado em 20/06/2017, DJe 26/06/2017)

Se a liberdade de alguém durante o processo não gera perigo para o próprio processo – e nisso se afasta eventual tutela da segurança pública pelo Juiz –, então não é caso de prender preventivamente, sob pena de se aplicar aquilo que venho chamando de execução antecipadíssima da pena, isto é, decretar a prisão cautelar como mera decorrência de um conjunto probatório que indique a prática do crime, independentemente de fundamento no que tange ao “periculum libertatis”.

REFERÊNCIA:

LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 9. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2012.